31 de dezembro de 2009

Até já em 2010

«Há aqueles que lutam um dia; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;
Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis»
.

B. Brecht

Obrigada a todos os que me acompanharam ao longo deste ano. Tempo difuso de perdas pessoais mas também de descobertas e de novas incursões.

Aos meus Pais, pelo amor incondicional; à Pulga Estúdios pelo companheirismo criativo; à Incomunidade pela «tribo das portas sensíveis»; a todos os meus amigos que, face a face ou digitalmente, estiveram presentes, esses sim são os meus imprescindíveis!

Até já, já em 2010!
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30 de dezembro de 2009

Filo-café: Descoberta | Invenção

Taberninha do Manel Vila Nova de Gaia
Av. Diogo Leite, 308
16 Janeiro 2010 21h30m

Apresentação do livro Sonetos Para-Infantis de Pedro Ludgero

O amor em tempos descartáveis e plastificados (II)

Eis quando Penélope e Ulisses esvoaçam por entre os céus do Olimpo que a dualidade encapotada se transforma numa trilogia. Isto porque a mise-en-scène requer uma terceira divindade. Desta feita, uma Medusa cuja cabeça oxigenada enquista de um autismo psicologizante. Esta Medusa da áurea moderna ou pós-moderna (por favor, caros ciberleitores não entremos em querelas terminológicas), aspirava a ser Diana, a deusa da caça. Isto porque o seu cosmos lexical entranha os termos alusivos à cadeia predador/presa e um eterno «espetar as garras em...». Claro está que, imbuída de bagatelas psicológicas, se situa numa redoma de cristal, de castelos suspensos erguidos no ar de uma vivência cor-de-rosa.

Uma Medusa oxigenada, um abutre encapotado e que, sem quaisquer dúvidas, almeja sabotar o enlace de Penélope e Ulisses.

Ulisses é forte, no âmbito das suas parcas possibilidades, um deus invertido pois o seu «calcanhar de Aquiles» é de uma fraqueza acutilante, o que transparece no percurso que segue, nas escolhas que faz, nos projectos que abraça, na descartabilidade das deusas do Olimpo, sempre à socapa de novas musas, ninfas e ninfetas que sucumbam perante o seu charme e sedução aparentes e superficiais. E nunca, nunca conseguiu contornar o seu próprio Adamastor!

Mas calma caros ciberleitores! Ulisses é esperto demais! Vitimiza-se e o papel de vítima assenta-lhe bem, relevando a sua eterna infelicidade, carpindo as suas mágoas e angústias, mas sapiente nas charadas e nos jogos psicológicos que entretece. Daí, o encanto ou encantamento por Medusa e o fascínio pela psique.

Ulisses até é um gajo divinal e caricato. Promulgando a era do emocional, peca pelo fundamentalismo da Razão imbuído pelo Século das Luzes, um «iluminado» pela castração e pela repressão dos seus afectos.

Mas, afinal, o que é que o Amor tem a ver com tudo isto, sob o advento dos relatos descartáveis e efémeros?

Num dos seus vaticínios ou presságios, Ulisses prospectiva o movimento feminista. No seu discurso transparece já os seus receios e temores. Não é que, nos tempos que se avizinham, as mulheres vão tornar-se em caçadoras solitárias, na senda de uma carreira profissional, relegando a condição feminina que, na sua óptica redutora, impregna o património genético do cromossoma XX?

Qual Velho do Restelo, a sua antevisão é a de que a raiz de todos os males que irão assombrar as sociedades vindouras reside nisto mesmo. Um cenário de perplexidade, um compósito de lares desfeitos, de divórcios consumados, de filhos iletrados e consumidores de drogas... E essa condição feminina, imputada à nascença pelo reduto genético, apenas lhe dá asas para que possa navegar mais livremente sem quaisquer freios pois, mantendo as suas deusas, ninfas e ninfetas no reduto caseiro, Ulisses dá asas à sua imaginação, ensaiando e descartando.

22 de dezembro de 2009

Algoritmo do corpo | René Crevel

Ainda antes da (de)formação corpórea pelo habitus da comensalidade natalícia:


EU + X / Y = uma bruta bacanal


Para dizer a verdade, o mistério mantém-se. A pele não me revelou nada. Acabei por saber que os contornos carnais não marcam nenhumas fronteiras e os corpos bem podem estar receptivos: o apaziguamento não será coisa do espírito.

Equação de pele em cima dos divãs, juntam-se letras e algarismos humanos, mudam de lugar, procuram noções de igualdade sem parecer, aliás, que se divertem muito.

Não era, no entanto, o meu corpo mas o meu espírito que pedia um espelho.

15 de dezembro de 2009

Ideia da Ironia | Albert Camus

Como estou saturada do frenesi pretensamente altruísta cultivado pela e na quadra natalícia, nada melhor do que retomar a ironia de Camus…


Há dois anos, conheci uma velha. Sofria ela de uma doença de que tinha pensado que morria. Todo o seu lado direito tinha ficado paralisado. Não tinha senão uma metade neste mundo e a outra já lhe era estranha. Velhinha mexida e tagarela, tinha sido reduzida ao silêncio e à imobilidade. Sozinha durante longos dias, iletrada, pouco sensível, a sua vida voltava-se inteiramente para Deus.

Naquele dia, alguém se interessava por ela. Era um rapaz. Tinha tomado verdadeiro interesse pelo tédio da velha. Isso, tinha-o ela sentido bem. E aquele interesse era uma sorte inesperada para a doente. Ela contava-lhe as suas dores com animação: estava no fim dos seus dias e é bem preciso deixar o lugar aos novos. Se se aborrecia? Isso era evidente. Não falavam com ela. Estava no seu canto, como um cão. Mais valia acabar. Porque ela gostaria mais de morrer do que estar a cargo de alguém.

Tinham ido para a mesa. O rapaz tinha sido convidado para jantar. A velha não comia porque os alimentos são pesados à noite. Tinha ficado no seu canto, por detrás daquele que a tinha escutado. Para prolongar a reunião, decidiram ir ao cinema. Ia justamente uma fita alegre.

O rapaz tinha aceitado irreflectidamente, sem pensar no ser que continuava a existir atrás de si. Ele sentia-se colocado diante do mais atroz infortúnio que tinha ainda conhecido: o de uma velha doente que se abandona para ir ao cinema. Queria ir-se embora e furtar-se-lhe, não queria saber, tentava retirar a mão. Durante um segundo teve um ódio feroz àquela velha e pensou em esbofeteá-la à toa.

Mas que importa se aceitarmos tudo? A morte para todos, mas para cada um a sua morte. Afinal de contas, o sol aquece-nos os ossos apesar de tudo.

3 de dezembro de 2009

A górgona academicus na era 2.0

Às vezes, a malta reúne-se e promove tertúlias, daquelas em que gosto de premiar os abutres que por mim passa(ra)m… tento não os ver e ouvir mas a lucidez incansável e a canseira lúdica não mo possibilitam. Daí que nunca pude ficar indiferente à górgona-mor dos corredores livrescos. Ainda chegámos a partilhar um espaço até ao dia em que eu decidi comprar uma motosserra e colectar o meu meio ar condicionado. O ar era irrespirável pois o raio da górgona contabilizava a quantidade de cigarros que eu sugava; o meu tempo de almoço e recorde de pataniscas ingeridas; o número de chamadas para o meu celular; as minhas idas à casa de banho; o número de e-mails por mim enviado; a marca de perfume por mim usada; as vezes que eu mudava de figurino por semana; o tamanho dos meus anéis e colares, para não entrar em mais pormenores… apenas fico intrigada como ela nunca conseguiu quantificar o seu próprio índice de mesquinhez… deve existir uma fórmula linguisticamente testada para o efeito, daquelas que a própria Bardin corrobora com as variantes da análise de conteúdo. Se há coisas que me deixam fula e me fazem deglutir ainda mais pataniscas é constatar que existem ratas de biblioteca à deriva na carreira, ávidas de ambição mas subjugadas pela falta de auto-estima e pela mão ubíqua do cônjuge.

Os excertos que apresentamos de seguida têm como objectivo principal ilustrar a rotina frívola da Górgona e do seu dilecto esposo Poseídon, afigurando-se como objectivos secundários manter a minha sanidade mental e obstar a que a dita motosserra escalpelize os seus invejáveis cabelos.

Górgona (G): Olha, acabei de chegar ao gabinete e enfim… acho que ela hoje tresanda a Calvin Klein e tinha o ar condicionado ligado… agora deve ter ido à casa de banho, depois tomar um café e fumar dois cigarros. E anda o Estado a subsidiar estes bolseiros… mas olha não era disto que queria falar. Estás aí?

Poseídon (P): Estou a acabar de rever a apresentação e daqui a pouco, vou ler as cábulas para a aula mas diz lá…

G: É rápido, é que cheguei e deu-me a sensação de que o meu computador já estava ligado…

P: Mas tu é que tens a password, não é?


G: Sim mas…

P: Então, não é possível!

G: Pois, deve ter sido reflexo mas quando acedi ao Outlook, não tinha Internet! Achas que ela podia ligar e desligar?

P: Mas o servidor é geral e só tu tens a password, não é?

G: Hum… agora já está a estabelecer a ligação mas está lento… deixa estar, vou tentar resolver isto. Até logo.

[volvidos cinco minutos]

G: Estou? Estás aí?

P: Diz… mas rápido pois vou dar aulas!

G: Acabei de receber um e-mail e estou um bocado atónita, nem sei que dizer… vou ter que responder já a esta aluna mas nem sei bem que dizer… como achas que devo começar o e-mail?

P: A aluna tem nome?

G: Claro, mas será abusivo tratá-la por estimada ou cara… e depois, vou logo directa ao assunto ou… hum, será que loquaz é sinónimo de eloquente? Vê aí! Ela também pede uns dados mas esses relatórios ficaram em casa. Achas que os viste em cima da mesa da sala? Se calhar vou ligar à minha mãe para confirmar. E não estou ainda a ver qual o melhor termo para concluir a missiva, mas vai lá, depois falamos….

P: Até logo! (ggggrrrrrrrrrrrr)

2 de dezembro de 2009

«7», Mário de Sá-Carneiro

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

1 de dezembro de 2009

O amor em tempos descartáveis e plastificados

Sempre que abordam a problemática das relações (im)pessoais, lembro-me do meu amigo Ulisses como o protótipo do gajo que descarta. Descarta tudo e todos. Descarta-se a si mesmo sem o saber, reprimindo e castrando os seus próprios sentimentos. E a ânsia de ambição é tão desmedida que, no silêncio e no eco das suas próprias ideias e projectos, descarta tudo o que se lhes sobrepõe. É infeliz e a sua infelicidade e podridão corroem-no e corrompem os demais.

Ulisses (invertido) é um homem (com letra minúscula) vivido, experiente e que prima pelos jogos psicológicos que entretece com as indivíduas, em particular, as indivíduas magoadas, ressabiadas e com antecedentes maníaco-depressivos.

Penélope é bela, aufere de uma beleza e elegância, à mistura com charme, e reveste-se de ideais e de uma forma particular como encara, hoje, o zapping amoroso após uma ruptura afectiva. Contudo, não consegue escapar à teia do descartável, do zarpar efémero.

Ulisses e Penélope compartilham trajectórias de vida similares, com os mesmos percalços e antecedentes, ambos feridos/magoados/ressabiados. Com uma única destrinça: Ulisses enfeuda-se numa redoma de orgulho que o eiva e Penélope, pelo menos o creio, libertou-se desse sentir mesquinho. E contudo, preenchem um vazio incessante mediante a condição efémera da era descartável.

Ulisses, materialmente, frui de tudo mas no plano afectivo não passa de um sem-abrigo, sem poiso certo onde pousar, qual nómada à deriva, sem bússola, preenchendo esse vácuo com projectos e mais projectos, com pensamentos e ideias megalómanas e profundamente líricas, com enlaces descartáveis. O pior disto tudo? Atentando no seu cariz higienista, Ulisses nem preservativo usa na era do VIH/SIDA, ou seja, do «amor» plastificado.

Ulisses é, de facto, o tipo de homem que nos faz sentir realmente bem!! Isto porque ao fazer um convite para um almoço ou um jantar, apenas fala de trabalho e filosofa acerca das eternas querelas do género, mas uma filosofia com um trago de senso comum refinado. Quando termina o repasto – pobre coitado, Morfeu abraça-o, após o seu esgrimir de mamífero primata, e deita-se para no dia seguinte trabalhar, laborar e escolher, de entre o seu cardápio, a gaja a descartar nessa noite.

Será que o coro de uma tragédia grega, ao assistir a esta catarse efémera e descartável, sentiria pena e choraria por ele? Qual o seu veredicto?!? O de Penélope não sei. Talvez fosse laureada e ovada por tamanha paciência, talvez fosse beatificada, por alinhar num jogo de condicionantes, de comportamentos laboralmente aditivos e de enlaces fugazes feito.

26 de novembro de 2009

25 de novembro de 2009

Ideia do Avesso e do Direito | Albert Camus

Era uma mulher original e solitária. Mantinha uma estreita intimidade com os espíritos, tomava partido nas suas contendas e recusava-se a ver certas pessoas da sua família mal consideradas no mundo em que se refugiava.

Calhou-lhe uma pequena herança que vinha da sua irmã. Aqueles cinco mil francos, chegados no fim de uma vida, revelaram-se bastante incómodos… Perto da morte, quis abrigar os seus ossos… Comprou o jazigo. Estava ali um valor seguro, ao abrigo das flutuações da bolsa e dos acontecimentos políticos. Mandou arranjar a fossa interior, pô-la pronta a receber o seu próprio corpo. E, isto acabado, mandou gravar o seu nome em capitais de oiro.

Este negócio alegrou-a tão profundamente que foi tomada de um verdadeiro amor pelo seu túmulo. Vinha ver, ao princípio, os progressos dos trabalhos. E acabou por visitá-lo todos os domingos à tarde. Passou a ser a sua única saída e a sua única distracção.

Um homem contempla e o outro cava o seu túmulo: como distingui-los? Os homens e o seu absurdo? Mas aqui está o sorriso do céu. A luz aumenta e breve será o Verão? Mas aqui estão os olhos e as vozes daqueles que é preciso amar. Estou preso ao mundo por todos os meus gestos, aos homens por toda a minha piedade e o meu reconhecimento. Entre este direito e este avesso do mundo, eu não quero escolher, não gosto que se escolha.

24 de novembro de 2009

Vinhas só.
Atrás de ti apenas um rasto de sangue.

Quando te aproximaste logo percebi que a tua náusea me avilta.
És o meu nojo e o ser entediante que me inebria...

Resta o conforto do lar e a promessa de um repasto felino.

17 de novembro de 2009

«Pobre poeta, andas à caça das palavras», Isabel Meyrelles

Pobre poeta, andas à caça das palavras
e são elas que te caçam a ti,
bem podes armar-lhes ciladas,
és sempre tu que cais na armadilha,
a tua caçadeira tem mau olhado,
a tua caçadeira atira para os cantos,
a tua caçadeira atira no verso branco,
a tua caçadeira atira nos acrósticos
e mata os caligramas,
guarda a tua armadilha,
a tua caça cospe-te no olho,
vai antes caçar furtivamente
nas propriedades do teu feliz vizinho,
o poeta que sabe caçar
o pássaro azul.

13 de novembro de 2009


O marasmo impregna a cidade de Matosinhos.

No café em que escrevo estas notas, o número de clientes é inferior ao número de empregados que, entretanto, espreitam e comentam sobre o que nada acontece. Nem a vista do mar ou o tributo aos pescadores anestesia este sonambulismo envolvente.

Ao caminharmos pela Rua de Brito Capelo, prontamente sentimos a não-presença. Esta é bem pior que a ausência, pois pressupõe o amorfismo económico e sociocultural da cidade. Nem a passagem do metro colmata as sombras que deambulam perante lojas estranguladas. Em direcção a Matosinhos Sul, ainda nos sentimos tentados a enumerar os restaurantes e o semi-novo Teatro Constantino Nery. Não, nada de novo!

Matosinhos: um não lugar.

Ironicamente, ou não, o «homem do leme» faz-se ouvir...

12 de novembro de 2009

Ideia do Cientista Social

Ao revisitar o livro de Luc Ferry e Jean-Didier Vincent sobre «O que é o Homem?», numa tentativa de concertação dos fundamentos bio-filosóficos, prontamente divago para as previsões de Saramago ou para a «pincelada de zarcão» de mais a menos infinito de Gedeão.

A propósito do homem e das vivências em sociedade, fico com os pêlos, os que remanescem por erradicar, solenemente eriçados quando se menciona essa figura obscura e híbrida, de seu nome «cientista social».

Nos corredores da faculdade reproduzem-se quadros teórico-conceptuais e metodológicos e evoca-se, por vezes, a máxima de Kurt Lewin de que não existe nada mais prático do que uma boa teoria. Somos apresentados aos formalismos e às regras que balizam todas as nossas ideias expressas, por conselho, na terceira pessoa do plural, pois não nos compete formular ou esboçar o que quer que seja no «Eu». Neste quadro são escassíssimos os professores que se perspectivam como meros facilitadores do processo de aprendizagem e que fomentam uma leitura crítica dos factos sociais.

Por isso, quando descortino alguns comentários alusivos aos arautos da cultura ou aos guardiães do conhecimento, trata-se de um vício de formação. As aporias perduram: há quem fique preso a quadros teóricos para escamotear a sua ignorância e há quem os recuse paradoxalmente para invocar a sua ignorância fruto de (des)amarras formais e arreigar-se ao auto-didactismo.

Mantém-se o repto de Einstein de que mais importante do que o conhecimento é a imaginação…

6 de novembro de 2009

Ideia da Vergonha | Giorgio Agamben

Para o homem moderno, a teodiceia é necessária, e ao mesmo tempo falha da forma mais miserável: o próprio Deus se acusa e se rebola, por assim dizer, na sua própria lama teológica, e é precisamente isso que dá ao nosso mal-estar a sua natureza inconfundível. O abismo sobre o qual vacila a nossa razão não é o da necessidade, mas o da contingência e da banalidade do mal. Não se pode ser, nem culpado nem inocente de qualquer coisa de contingente: pode apenas ter-se vergonha disso, como quando, na rua, escorregamos numa casca de banana. O nosso Deus é um Deus que se envergonha. Mas, tal como toda a relutância trai, naquele que a experimenta, uma secreta solidariedade com o objecto do seu desprezo, assim também a vergonha é o sinal de uma inaudita e tremenda proximidade do homem em relação a si próprio. O sentimento de miséria é o último pudor do homem frente a si próprio, do mesmo modo que a contingência - sob o signo da qual parece agora desenrolar-se docilmente toda a sua existência - é a máscara que encobre o peso crescente que causas unicamente humanas exercem sobre os destinos da humanidade.

5 de novembro de 2009

O repasto prossegue
besta de ti próprio
cultiva a tua senilidade.

Mais uma metáfora, por favor!

4 de novembro de 2009

Ideia da Vertigem | Milan Kundera

É natural que quem quer «elevar-se» sempre mais, um dia, acaba por ter vertigens.

O que são vertigens?

Medo de cair?

Mas então porque é que temos vertigens num miradoiro protegido com um parapeito?


As vertigens não são o medo de cair. É a voz do vazio por debaixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair do qual, logo a seguir, nos protegemos com pavor.

29 de outubro de 2009

O Ciclo de Pulga Estúdios

Pulga Estúdios regressou parcialmente ao seu censor e está a plenos pulmões no Facebook, pela mão, mais uma, de Herberto Helder.



«Da Curva Sôfrega dos Teus Lábios»

28 de outubro de 2009

27 de outubro de 2009

A quiche e o arroz de pato

Algures num espaço
normalizado e estilizado pelos demais,
serve-se uma refeição frugal brutalizada pela condição artística e feminina – o famigerado arroz de pato, repasto de algozes temidos pela crítica aberta a todos mas sem inimigos e a saudosa quiche, apanágio de mulheres histéricas e absortas.


Estes dois pratos têm um denominador comum: a tua ausência e a minha teia. Nela consigo enredar fantasmas e ossadas que já nem tento sepultar. Talvez a minha mediocridade seja melhor do que a tua e nas duas mãos que rejeito há um papel: lê-se algures que definho! Primeiro assegura-te disso e depois não me procures pois eu nunca existi, sequer na tua sombra.

22 de outubro de 2009

Tempo para morrer como...

O filme «Morrer como um homem» de João Pedro Rodrigues encerra em si mesmo uma reflexão crítica sobre um conjunto de questões que transcendem a condição masculina/feminina do ser humano ou a querela entre identidade sexual/identidade de género.

Uma amálgama cruzada de papéis e valores, a estória de um travesti profundamente religioso e que, tendo vivido como uma mulher, a Tónia, tenciona morrer como um homem, o António Cipião. Curiosamente estas vivências radicam em esqueletos e fantasmas, comummente vivenciados por homens e mulheres ainda que em registos diferentes: o medo de envelhecer e de perder a juventude, e com esta a beleza; o receio da solidão; o egocentrismo; a busca do glamour e do fascínio; a preocupação com o desempenho do papel maternal/paternal, ainda que neste caso estejamos perante uma mãe biologicamente amputada e um pai socialmente ausente.

Musicalmente as escolhas foram muito felizes. Dois dos momentos mais poéticos são acompanhados pela sonoridade de António Variações, nomeadamente «Erva daninha a alastrar» e «Sempre ausente». Duas metáforas para viagens interiores e partilhadas, a que se acresce «Calvary» de Baby Dee.

O filme é rodado ao sabor de uma permanente caça aos gambuzinos, com alguns laivos de Almodóvar. Por fim, o abismo de um corpo já despojado de quaisquer adereços (lentes, perucas, lantejoulas, …), e que anseia pelo repouso na duplicidade de ter a seu lado o companheiro.

20 de outubro de 2009

Este é o meu sopro, o meu grito ao mundo!

Se as palavras para nomear o que é belo há muito definharam não resta mais do que o dever de sonhar sempre, uma e outra vez até ao infinito.

A estranha em mim subsiste, sem devaneios ou ilusões.

Avisei-te inúmeras vezes que crio e reproduzo – recrio a minha própria loucura e reproduzo as tuas palavras plenas de renúncias.

15 de outubro de 2009

Ideia do Imemorial | Giorgio Agamben

Quando acordamos sabemos por vezes que vimos em sonhos a verdade, clara e ao alcance da mão, de tal modo que ficamos totalmente dominados por ela. Umas vezes é-nos dado ver uma escrita cujo selo subitamente quebrado nos fornece o segredo da nossa existência. Outras vezes, uma só palavra, acompanhada de um gesto imperioso, ou repetida numa lenga-lenga infantil, ilumina como um relâmpago toda uma paisagem de sombras, devolvendo a todos os pormenores a sua forma reencontrada, definitiva.

No despertar, porém, embora nos recordemos de forma límpida, de todas as imagens do sonho, aquela escrita e aquela palavra perderam a sua força de verdade, e é com tristeza que as voltamos de todos os lados, sem conseguir redescobrir-lhes o encanto. Temos o sonho, mas, inexplicavelmente, falta-nos a sua essência, que ficou sepultada naquela terra à qual, uma vez despertados, deixámos de ter acesso.

A promessa que o sonho formula no próprio momento em que se dissipa é a de uma lucidez tão poderosa que nos entrega à distracção, de uma palavra tão completa que nos reenvia para a infância, de uma razão tão soberana que se compreende a si mesma como incompreensível.

13 de outubro de 2009


Cicatrizo na cidade cinzenta

Deambular pela urbe, no Porto, é esbracejar por entre cadáveres, inalar becos desnudados em busca do Novo. Não se sente o pulsar da cidade e os sons estridentes emanam da arena política… O resto sem tudo e com nada esvai-se em máscaras, em olhares e em gestos despersonificados, no que os teóricos nomeiam de despersonalização e anonimato.

Fazem-me falta as metáforas dramatúrgicas de Goffman para conseguir ascender ao desvio das normas que os arautos profetizam! Os falsos arautos da vivência societal pois, esta nada mais significa do que enfeudar-me em mim mesma a observar os fios metálicos da miséria que tocam os pássaros estonteantes!

Entretanto, a náusea avilta e tu desatas as feridas…

1 de outubro de 2009

Filo-Café: Viagens - de Lamego ao Titicaca

Teatro Ribeiro Conceição (Lamego)
2 Outubro 2009, 21-24h

Apresentação do livro: Geisers de Maria Estela Guedes
Concerto: Alexandra Bernardo / Alberto Augusto Miranda

30 de setembro de 2009

«O Caso Mental Português»

Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria «provincianismo».

[…]

Os homens, desde que entre eles se levantou a ilusão ou realidade chamada civilização, passaram a viver, em relação a ela, de uma de três maneiras, que definirei por símbolos, dizendo que vivem ou como campónios, ou como provincianos, ou como citadinos. Não se esqueça que trato de estados mentais e não geográficos, e que portanto o campónio ou o provinciano pode ter vivido sempre em cidade, e o citadino sempre no que lhe é natural desterro.

[…]

A tragédia mental de Portugal é que o nosso escol é estruturalmente provinciano.

[…]

O nosso escol político não tem ideias excepto sobre política, e as que tem sobre política são servilmente plagiadas do estrangeiro. O nosso escol literário é ainda pior: nem sobre literatura tem ideias.


Fernando Pessoa
In Fama, n.º 1, Lisboa, 30 de Novembro de 1932

25 de setembro de 2009

Encontro de Poetas no Café Piolho | 26 de Setembro | 17h00m

Tele-estupidez e ruralidade mental

«… é com certo espanto que no espelho da manhã / distraído diviso a cara que me resta»


Um momento, não se trata do poema «Muriel» de Ruy Belo, por nós já aqui guisado, mas sim do espanto com que, hoje de manhã, me deparei ao ler o Jornal de Notícias, designadamente o espaço referente aos Média: «’Telerural’ alvo de queixas».

Fico estupefacta quando as principais queixas recaem no facto da linguagem empregue ser conotada de «boçal» e «ofensiva». Pasmo tanto maior pois foi com o dinheiro dos contribuintes que o comediante ou seja lá o que for, de seu nome Fernando Rocha, fez currículo no canal 2 da RTP ao roçar o limiar da higiene e sanidade do legado de Camões com a linguagem mais grosseira, grotesca, rude, estúpida, idiota e ignorante a que tive a perda de tempo a assistir.

Não deixa de ser curioso também que, para validar, triangular e corroborar opiniões e argumentos, esta sociedade eleja a expertise como mote. Desta feita, cabe ao expert ou especialista em Televisão, de seu nome Rui Cádima, aferir que «o 'Telerural' não é um programa de serviço público, pois roça o mau gosto e é um bocado boçal».

De facto, sempre foi complicado fazer programas de humor em Portugal, ou porque não há talento, ou porque se fragilizam lobbies e instituições seculares ou porque se recorre à brejeirice…

Da minha parte, força rapazes, Quim Roscas e Zé Estacionâncio, e viva Curral de Moinas!

22 de setembro de 2009

Ideia da Vocação | Giorgio Agamben

A que coisa é fiel o poeta? A pergunta envolve certamente qualquer coisa que não pode ser fixada em proposições ou em profissões de fé memorizadas. Mas como se pode conservar uma fidelidade sem nunca a formular, nem sequer a si próprio? Ela teria sempre de sair da mente no próprio instante em que se afirma.

...

A fidelidade àquilo que não pode ser tematizado, mas também não simplesmente silenciado, é uma traição de natureza sagrada na qual a memória, girando subitamente como um redemoinho, descobre a frente de neve do esquecimento. Este gesto, este abraço invertido da memória e do esquecimento, que conserva intacta, no seu centro, a identidade do que é imemorial e inesquecível, é a vocação.

16 de setembro de 2009

Alienai-vos, alienai-vos, alienai-vos
de capital, exploração e bestialidade
para não sentirdes sobre vós
a névoa narcótica do capitalismo!
Com vista mais poderosa podemos dissolver o mundo. Diante dos olhos fracos solidifica-se, diante dos olhos mais fracos mostra o punho e não tem vergonha, espanca aquele que ousa contemplá-lo.

10 de setembro de 2009

9 de setembro de 2009

«Esta é a minha carta ao mundo e outros poemas», Emily Dickinson

Recordamos, hoje, um excerto do legado poético de Emily Dickinson, em formato bilingue: a edição inglesa a cargo de Thomas H. Johnson e a tradução de Cecília Rego Pinheiro ancorada na fidelidade ao sentido da linguagem da autora.


To lose thee - sweeter than to gain
All other hearts I knew.
'Tis true the drought is destitute,
But then, I had the dew!

The Caspian has its realms of sand,
Its other realm of sea.
Without the sterile perquisite,
No Caspian could be.


Perder-vos - é mais doce do que ganhar
Todos os corações que conheci.
É verdade que a secura é carente,
Mas, há sempre o orvalho!

O Cáspio possui um reino de areia,
A outra forma de ser mar.
Sem a estéril prerrogativa,
Nenhum Cáspio poderia durar.

8 de setembro de 2009

«Um dos meios mais eficazes de
sedução do Mal é o convite à luta»

3 de setembro de 2009

Retratos de uma Sibila decadente (VI)

Os corpos, esse fascínio pela corporeidade que, como um Carro de Jagrená, a impelia a pensar sexual e a agir carnalmente. Essas incursões na noite desgastavam-na e geravam cada vez mais dilemas morais. No seio familiar tinha sido tudo tão simples e fácil, que as suas tentativas insistentes de angariar mais corpos e sexos e alimentar-se da paixão fugaz não lhe permitiam... Ah, chega de juízos de valor, se se sentia atraída por alguém à primeira vista por que não demonstrá-lo? Se desejava alguém por que não haveria de concretizar esse desejo? Nada a impedia, a não ser a moralidade vigente na célula familiar e sem dúvida a hipocrisia dominante da sociedade patriarcal. E ela não se privava de nada, a não ser da sua própria existência pois sempre havia vivido em demasia a vida dos outros. Altruísmos? Não, a sensação egoísta de que ao viver a miséria dos demais esquecia momentaneamente a sua própria miséria. A do mundo, bem… não podia padecer de todos os males!

Lembras-te quando me davas a mão?

29 de agosto de 2009

Para a Avó Celeste

Ainda ontem me tentaram confortar com as palavras de um filósofo indiano, de que a felicidade advém do curso natural da vida! De facto, a noção de morte entranha-se no meu percurso, com a perda recente do avô Tone e, agora, da avó Celeste. Os meus avós nunca foram educados para a manifestação ostensiva dos afectos mas, à sua maneira, demonstravam o seu carinho e preocupação. Aliás, tendo sido companheiros durante 62 anos, o meu avô tinha um modo peculiar de silenciar alguns arrufos conjugais: «mulher deixa para lá, eu gosto de ti!».

Recordo a minha avó como uma mulher de forte personalidade, trabalhadora, responsável, de palavra, altiva e amiga. Há episódios que retenho como a sua abertura aos novos tempos e costumes, nomeadamente ao nível das relações interpessoais; assim como a sua percepção do valor do conhecimento e da educação, sendo ela analfabeta, tanto mais que o dicionário de língua portuguesa que me tem acompanhado já havia sido por ela ofertado ao meu pai; também o primeiro computador que tive foi por ela oferecido, entre pasmo e cepticismo perante as potencialidades da máquina; durante a sua vida, foi uma mulher de negócios e mesmo na transição para o euro, com a ajuda do famigerado kit, a minha avó lá se adaptou e ninguém a enganava!

Avó recordo-a com muito carinho e já com imensa saudade, até das suas palmadas (era o método da Celeste aferir a manutenção do meu peso corporal e se eu emagrecia...).

Até já avó.
Beijo imenso

20 de agosto de 2009

«Autobiografia», Jaroslav Seifert

Com o 'Lado B' inauguramos a tradução de poemas neste blogue. O mote é dado por Jaroslav Seifert, reiterando a liberdade poética e a primazia do texto, e cujo poema traduzido do checo para inglês por Ewald Mosers pode ser aqui consultado.

Às vezes
quando a minha mãe falava de si própria
dizia:
A minha vida foi triste e calma,
eu sempre andei em bicos de pé.
Mas se eu me irritasse

e batesse o pé
as chávenas, que tinham sido da minha mãe,
tilintavam no armário
e faziam-me rir.


No momento em que nasci, assim me disseram,
uma borboleta entrou pela janela
e pousou na cama da minha mãe,
mas nesse mesmo momento um cão uivou no quintal.
A minha mãe teve
um mau pressentimento.


O meu percurso de vida não foi tão calmo
nem tão sereno como o dela.
Mas mesmo quando eu contemplo os dias de hoje
melancolicamente
tal como molduras vazias
e tudo o que vejo é um muro árido,
ainda assim, tem sido tão belo.


Existem muitos momentos
que não posso esquecer,
momentos como flores radiantes
de todas as cores e tonalidades possíveis,
noites repletas de fragrância
como bagos de uvas purpúreos
ocultos pelas folhas da escuridão.


Li poesia com paixão
e adorei a música
e deambulei, sempre surpreendido,
de beleza em beleza.
Mas quando vi pela primeira vez
a imagem de uma mulher nua
comecei a acreditar em milagres.


A minha vida passou velozmente.
Foi muito breve
para os meus imensos anseios,
que não conheciam limites.
Sem me aperceber
a minha vida aproximava-se do fim.

Em breve a morte irá bater-me à porta
e entrar.
Recuperarei o fôlego com um terror sobressaltado
e esquecer-me-ei de respirar de novo.

Que eu não seja recusado no momento
de beijar as mãos mais uma vez
de todos os que pacientemente e a meu lado
caminharam uma e outra vez
e que, acima de tudo, amaram.

18 de agosto de 2009

«Exercício espiritual», Mário Cesariny

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

E é preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

13 de agosto de 2009

Quando olhei para trás logo percebi que tudo o que sempre busquei estava mesmo ali ao meu lado e não se tratava da minha sombra - era Eu.

«Se eu quisesse, enlouquecia»

6 de agosto de 2009

«Anjo», Pedro Parcerias

O meu anjo há muito que as asas perdeu
desde a areytos que implodiu
neste universo;
brincou nas praias, arrasando e
elevando aos céus castelos de areia
sob o olhar de Artemisa.

Criação e poder: os meus pais
exagerados membros. grandiosos enormes
cataclismas que tapam os poros
dos meus sentidos.
(«eu não sou vida - é sempre uma percepção-
memória deslizante que por mim fala»)
Navego em dialectos ininteligíveis.
Dou vida as máquinas fazedoras
de bonecas de pano.
Crio mundos com a mesma facilidade
com que os destruo. o negro é o branco de sonhos e
pesadelos.
Possuo demais.
(«eu jogo interior - pura memória, puro pensamento»)

in «O Anjo e o Viador de Bordel»

4 de agosto de 2009

«A noite veste-me com inércia»

Retratos de uma Sibila decadente (V)

Um dia, cheguei a casa depois das compras e encontrei-te a filmar formigas e livros. Só consegui dizer que o teu estado esquizofrénico tinha galopado. Aliás, a filmagem das formigas poderia bem ser uma alusão mais do que metafórica ao facto de que pouco tempo nos restava e que, até certo ponto, é preferível ser microscópico, quase invisível, do que viver uma mentira que todos presenciam mas que recusam ao ponto de ser impossível voltar atrás.

E se eu pudesse como seria, como seria viver e reviver tudo mais uma e outra vez? Estarias tu presente para me acompanhar nesta viagem de angústia e de vómito fecundante?

31 de julho de 2009

«If you call poetry...», Jaroslav Seifert

If you call poetry a song
- and people often do -
then I've sung all my life.
And I marched with those who had nothing,
who lived from hand to mouth.
I was one of them.

I sang of their sufferings,
their faith, their hopes,
and I lived with them through whatever
they had to live through. Through their anguish,
weakness and fear and courage
and poverty's grief.
And their blood, whenever it flowed,
spattered me.

Always it flowed in plenty,
in this land of sweet rivers, grass and butterflies
and passionate women.
Of women, too, I sang.
Blinded by love
I staggered through my life,

tripping over dropped blossoms
or a cathedral step.

30 de julho de 2009

Em Praga sê... (II)

Dia II
Um dia incrivelmente quente e de mudança do dormitório para um single. De novo, no centro da cidade e à descoberta dos principais referentes culturais. Podem optar por um percurso turístico de autocarro. Não é caro e temos à disposição um áudio-guia cuja versão portuguesa oscila entre o castelhano e o português brasileiro. No interregno da visita ao
Castelo de Praga ousei pedir para ir a uma casa-de-banho mas, como seria custeada, optei por usar os serviços e pedir uma cerveja. De regresso para um almoço tardio num café-bar irlandês. Investida cultural à Casa de Kafka, à livraria e à exposição de Dalí. No regresso, e graças ao meu infalível sentido de orientação, perdi-me e com um temporal à vista… grr… Lá dei com o hostel e partilhei o jantar com dois amigos belgas que já estavam de partida para mais uma aventura.

Dia III
Planificação de novo périplo cultural, abdicando de visitar o Museu da Literatura graças ao meu «apurado» sentido de orientação. Optei pela visita ao Museu Nacional, onde se encontram disponíveis bilhetes para concertos de jazz, música clássica, ópera…. Almoço no simpático Café Boulevard para depois rumar a ourivesarias, lojas de artesanato, galerias, um museu comercial e, obviamente, o Museu do Comunismo, lugar de culto mesmo ao lado do McDonald’s! A História pode, por vezes, ter um desfecho ou enquadramento irónicos!

De acrescer, o encontro feliz com a poesia de Jaroslav Seifert:
«To be a poet is no easy task.

He spots a warbler in the woods
flying above its nest
and he can’t stop himself from thinking
- O wicked ecstasy! -
of the warm tousled dimple
in his girl's armpit».


Dia IV
What’s new? Mais galerias, exposições, livrarias e, mais tarde, o Opera Show no Museu Nacional. Por fim, a investida ao Café Boulevard para uma pasta vegetariana acompanhada de um bom vinho! A esta altura, já estava enjoada de cerveja…





Be right back Praha!
( )s

Em Praga sê...

Para quem me conhece sabe que eu adoro viajar, sobretudo périplos de cariz cultural, com particular apetência pelos países de Leste. Encetei este percurso de relativismo sociocultural e existencial aos 16 anos quando, um ano após a queda do Muro de Berlim, tive o privilégio de conhecer Bona, Berlim e Munique com uma bolsa do Göethe Institut. Em 2001, ao abrigo de um projecto de investigação, rumei a Bucareste e Covasna. Lembro-me dos militares, do clima de instabilidade, da pobreza e das crianças sujas que vendiam mirtilos, não obstante a calorosa recepção com que toda a equipa foi brindada!

Após algumas incursões por Espanha, em particular Barcelona, permiti-me viajar este mês até Praga numa investida assumidamente cultural! Esta aventura começou, desde logo, na véspera da viagem, dia 21, ao (tentar) fazer a mala. É um dos momentos que menos aprecio uma vez que tenho sérias dificuldades em seleccionar quando tudo se me afigura relevante. Ao mesmo tempo, é incrível a sensação de despojamento e de liberdade quando condensamos numa mochila ou mala os artefactos a utilizar na viagem.















Dia I
Passadas duas a três horas de sono, arranquei para o aeroporto do Porto com voo agendado para as 06h00m. Passagem breve por Lisboa para rumar, em definitivo, a Praga. Após quatro horas, a minha necessidade primária consiste em acender um cigarro! Mesmo quando uma funcionária do aeroporto de Praga me pergunta se necessito de um táxi, só consigo esboçar um sorriso e dizer: «Sorry, I’m nervous and what I really need is to smoke». Findo o repasto tabágico, aproximo-me e reitero: «Ok, now I need a taxi». Este é o melhor procedimento, assim como repararem na placa do táxi, negociarem previamente a tarifa (neste caso, podia pagar em coroas checas, euros, dólares, ….) e no final peçam o recibo. Após 20-30m, estava no Hostel Elf. Na medida em que viajei sozinha, não queria estar confinada ao reduto de um quarto de hotel e aqui, para além de economizar, pude conhecer e interagir com jovens de diversos poisos do globo. Na primeira noite, dormi num dormitório com dois rapazes (canadiano e americano) e duas chicas. A meio da tarde, ainda tentei fazer o mapeamento do local do hostel, entrei numa biblioteca e a funcionária, sempre sorridente, ficou intrigada e sublinhou que o espaço se destinava a cidadãos checos. Acedeu à minha visita mas o meu checo é um pouco rudimentar, para não dizer nulo… Ao passar pela loja de conveniência non-stop, mesmo em frente ao hostel, entrei para comprar três singelas maçãs que custavam 26 coroas checas mas que em euros, segundo a conversão da funcionária, perfaziam 22 euros… Jantar calmo em Seifertova (o empregado era ligeiramente mais airoso do que o Salvatori de «O nome da rosa») e de novo no hostel, para uma noite tranquila. Definitivamente, tem mais pinta reler a biografia da Simone de Beauvoir num dormitório em Praga ou melhor num beliche! Quem diria, aos 33 anos concretizar uma das minhas fantasias de criança! Ao conhecer os dois machos do dormitório, fui convidada para uma ida ao centro da cidade, assistir ao espectáculo (invisível) do relógio astronómico e festejar! Não me fiz rogada e, sem entrar na lógica da quantificação, creio que superei o meu recorde pessoal de ingestão de cervejas, checas, irlandesas, whatever…


(continua)

21 de julho de 2009

Fragmentos temporariamente suspensos



Por motivos puramente hedonistas, aos quais somos voluntariamente alheios, estaremos ausentes estes dias para fins estritos de (des)intoxicação cultural em Praga.


Até já ( )s

14 de julho de 2009

Ideia do Poder | Giorgio Agamben

Talvez só no prazer as duas categorias inventadas pelo génio de Aristóteles, a potência e o acto, percam a sua opacidade, entretanto transformada em estereótipo, para, por um instante, se tornarem transparentes. O prazer – pode ler-se no tratado que o filósofo dedicou ao seu filho Nicómaco – é aquilo cuja forma é completa em cada instante, perpetuamente em acto. Desta definição resulta que a potência é o contrário do prazer. Ela é aquilo que nunca está em acto, que sempre falha o seu objectivo, em suma, é a dor. E se o prazer, de acordo com esta definição, nunca se desenrola no tempo, já a potência se inscreve essencialmente na duração. Estas considerações permitem lançar luz sobre as relações secretas que ligam o poder à potência. A dor da potência desvanece-se, de facto, no momento em que ela passa a acto. Mas existem por toda a parte – também dentro de nós – forças que obrigam a potência a permanecer em si mesma. É sobre estas forças que repousa o poder: ele é o isolamento da potência em relação ao seu acto, a organização da potência. Apropriando-se da sua dor, o poder fundamenta sobre ela a sua própria autoridade: e deixa literalmente incompleto o prazer dos homens.
Mas aquilo que assim se perde não é tanto o prazer como o próprio sentido da potência e da sua dor. Tornando-se interminável, esta cai sob a alçada do sonho e gera, para si própria e para o prazer, os mais monstruosos equívocos. Pervertendo a justa relação entre os meios e os fins, a busca e a formulação, confunde o cúmulo da dor – a omnipotência – com a maior das perfeições. Mas o prazer só é humano e inocente enquanto fim da potência, enquanto impotência; e a dor só é aceitável enquanto tensão que obscuramente prenuncia a sua crise, o juízo resolutivo. Na obra, como no prazer, o ser humano desfruta enfim da sua própria impotência.

10 de julho de 2009

4.ª Marcha do Orgulho LGBT|Porto

«Prece da Aurora»

Acorda. A Aurora incendiou a Noite,
da qual apenas resta um pouco de cinza azul.
A areia está fresca, como um tapete de jasmim.
O ar é mais límpido que uma gota de água de neve.

Acolá, é uma gazela que salta
ou uma flor grande que procura
aproximar-se do sol?
Ele vai trespassar com as suas flechas
o cálice da fonte
e o coração do amante infortunado.

Estou de pé na luz.
Desafio o sol a ofuscar-me,
já que não baixo os olhos
quando tu me olhas.

Acorda. Este perfume, que o vento balança,
não é o das laranjeiras, mas o hálito
do adolescente radioso
que agita o seu escudo no céu.

Vem. As auroras que temos para ver
estão contadas já
e a noite do túmulo é eterna.

Quero contemplar-te, estremecente e nua,
nesta luz em que o teu corpo,
estriado de pequenas veias azuladas,
brilhará como um sabre damasquinado.

Respirarei, sobre o teu colo, o odor do orvalho
que o humedecia nas nossas lutas amorosas,
e este aroma perfumará de tal modo a brisa
que os pastores perguntarão a si próprios
se ela não atravessou os Jardins do Paraíso.


in «O Jardim das Carícias», Anónimo Árabe (Séc. X)

2 de julho de 2009

Tens inteira liberdade de te absteres dos sofrimentos do mundo, isso corresponde à tua natureza; mas talvez o facto de te absteres seja o único sofrimento que possas evitar.

A musa dos recibos verdes

Vieste insegura mas a anos-luz da formosura!
Balofa corrias e só mais um pedias!

Pensei:
- Será um cigarro enrolado ou um profiterole congelado?

Fui ver e era mais um recibo verde a preencher!

1 de julho de 2009

Intacta Teatro/Performance/Música/Dança

Direcção, Texto e Música de Teixeira Moita; Interpretação, Coreografia e Figurinos de Fabíola Fernandes, voz-off de William Gavião e com assistência e produção de Carlos Pinto Vinagre.

Junta-se sem misturar, num mesmo espaço cénico, diferentes expressões e linguagens artísticas, tendo como base um "corpus" dramático fixado em texto.

O espectáculo será apresentado hoje, 1 de Julho, às 21h35m, nas Galerias de Paris (Porto).

Apareçam!

25 de junho de 2009

Centenário do Café Piolho


Convite para as cerimónias comemorativas do Centenário do Piolho, a terem lugar neste espaço, nos próximos dias 26 e 27 de Junho.


26 de Junho

11h00m
Actuação de Tunas da Academia.
12h00m
Descerramento de placa comemorativa, oferta da Federação Académica do Porto.
Lançamento da linha de merchandising «Piolho».
18h00m
Oferta de placa pela Câmara Municipal do Porto com a presença do Presidente da Câmara, Dr. Rui Rio.
22h00m
Homenagem musical ao Piolho.


27 de Junho

11h30m
Eucaristia celebrada por D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, na Igreja das Carmelitas.
12h30m
Tertúlia/Debate sobre o passado do Piolho e o futuro do Porto, com D. Manuel Clemente.

Apareçam!

23 de junho de 2009

Bom S. João 2009!

Ideia do Silêncio | Giorgio Agamben

Numa recolha de fábulas dos fins da Antiguidade lê-se este apólogo:

"Os Atenienses tinham por hábito chicotear a rigor todo o candidato a filósofo, e, se ele suportasse pacientemente a flagelação, poderia então ser considerado filósofo. Um dia, um dos que se tinham submetido a esta prova exclamou, depois de ter suportado os golpes em silêncio: 'Agora já sou digno de ser considerado filósofo!' Mas responderam-lhe, e com razão: 'Tê-lo-ias sido, se tivesses ficado calado.'"

A fábula ensina-nos que a filosofia tem certamente a ver com a experiência do silêncio, mas que o assumir dessa experiência não constitui de modo nenhum a identidade da filosofia. Esta está exposta no silêncio, absolutamente sem identidade, suporta o sem-nome sem encontrar nisto um nome para si própria. O silêncio não é a palavra secreta - pelo contrário, a sua palavra cala perfeitamente o próprio silêncio.

16 de junho de 2009

Estás em choque? Vai ouvir poesia!!!

Na próxima quinta-feira, dia 18, pelas 21h30m, tem lugar mais uma sessão de POESIA DE CHOQUE no Clube Literário do Porto com A. Pedro Ribeiro e Luís Carvalho.

Os convidados musicais são Sara (voz) e Blandino (guitarra). «Vai ser mesmo a rasgar» (citação dos mentores do evento).

Apareçam!

P.S. Pelo sim, pelo não, levem uma aspirina!

13 de junho de 2009

Ideia da Luz | Giorgio Agamben

Acendo a luz num quarto escuro; é um facto que o quarto iluminado já não é o quarto escuro, que perdi para sempre. E no entanto: não será ainda o mesmo quarto? Não será o quarto escuro o único conteúdo do quarto iluminado? Aquilo que não posso ter, aquilo que, ao mesmo tempo, recua até ao infinito e me empurra para diante, não é mais que uma representação da linguagem, o escuro que pressupõe a luz; mas se renuncio a captar esse pressuposto, se volto a atenção para a própria luz, se a recebo - então aquilo que a luz me dá é o mesmo quarto, o escuro não hipotético. O único conteúdo da revelação é aquilo que é fechado em si, o que é velado - a luz é apenas a chegada do escuro a si próprio.

7 de junho de 2009

4 de junho de 2009

Para o Avô Tone

O último post que publiquei ganhou vida e, de facto, não tive tempo para escrever a história do meu avô. A casa está mais vazia e as saudades apertam mas as memórias estão em mim!

Para quem não conheceu o avô Tone, ele adorava viver, sorrir, contar anedotas malandrecas e adivinhas, andar de bicicleta, beber o seu copito e, nos momentos de inspiração, cantar o fado! Não me esqueço da vez que fomos a Espanha e nos unimos, ele para beber e escapar à censura da minha avó, eu para fumar e escapar à censura dos meus pais. Depois, é também inesquecível a ida à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Durante a viagem falou-me das suas façanhas sexuais e, quando o deixei para tratar de burocracias, lá foi contar anedotas para o bar dos alunos.

Uma amiga deu-me um texto no dia da separação física, do qual transcrevo o seguinte excerto:

A vida significa tudo o que sempre significou.
É a mesma que sempre foi.
Existe uma inquebrantável continuidade.

Devo eu, só por não ser visto, estar ausente do pensamento?

Estou à tua espera. Num intervalo.
Aqui bem perto.
Mesmo ao virar da esquina.

Por isso, avô, só podia rematar esta mensagem com uma adivinha e desculpa se estou a contar mal: estão duas mulheres na rua à chuva. Que horas são? Falta um quarto para as duas!

Até já avô.
Beijo imenso

26 de maio de 2009

«Ainda não escrevi a tua História...»

Demoiselle policromatique
Fabio Carrari Fiori
Acreditar significa: libertar em nós o indestrutível, ou mais exactamente: libertar-se ser indestrutível; ou mais exactamente: ser.

25 de maio de 2009

«Queimai o Dinheiro»

Depois do estrondoso sucesso da «origem do mundo», as massas não resistiram ao apelo e rumaram aos jardins da livraria Centésima Página para queimar o dinheiro. Contudo, creio que caminharam em sentido contrário para a praceta onde se encontrava a equipa da SIC!

«Quem quer pouco, tem tudo, quem quer nada é livre;
quem não tem, e não deseja Homem, é igual aos deuses»
Ricardo Reis

Obrigada a todos pela vossa presença para a apresentação deste livro que, num momento em que a crise é uma palavra modal, desafia e contraria a lógica (pre)dominante! Indago como seria se este livro fizesse a apologia do açambarcai e reproduzi o dinheiro ou se se tratasse de um livro de auto-terapia sobre como não sucumbir ao endividamento e às hipotecas!

Já em 2005, o Pedro Ribeiro vaticinava que «o futuro já não é o que era/o futuro é agora»; «o país a arder/e eu também/o país a chorar/e eu a enlouquecer». Passados 4 anos, o país arde e chora penosamente, restando saber se a loucura do autor estabilizou ou regrediu!

Por defeito de formação, gosto de situar as minhas leituras segundo duas coordenadas: o tempo e o espaço. Neste caso, acresce uma terceira coordenada na medida em que o Pedro e eu perfilhamos da mesma formação em Sociologia, com o peso, por vezes, asfixiante da tradição francófona na qual o Bourdieu pontua como principal guru. Numa das lições inaugurais, Bourdieu (1996) advogava o papel do sociólogo como porta-voz, um messias, dos oprimidos e silenciados pela violência simbólica. Também neste livro, o Pedro advoga a sua boa nova, na esteira de uma poesia messiânica:

Não vim ao mundo para trabalhar
vim ao mundo para espalhar a Boa Nova
não de Deus nem de Jesus
mas do Homem
do Super-homem
dionisíaco
xamãnico
sem preconceitos
sem dinheiro
criador


O homem que não é lucro
que não é mercador
o novo homem
não-violento
não-predador
o homem novo
o Amor.

Na minha opinião, dificilmente o poeta pode aspirar ao estádio de profecias. A poesia não é praxis, quanto muito é um estádio de inconformismo permanente dado o sonambulismo real, e aspira a despertar consciências adormecidas, na senda da poesia militante tal como refere Vinicius de Moraes n'«O Haver»:

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

A propósito deste livro é curioso o paralelismo constante entre o amor e o dinheiro, que Marx denominava de «prostituta universal», e como o seu apelo pode ser encarado como uma espécie de despojamento, em sentido lato, da acepção restrita de Homo economicus. A este propósito, Morin (2007) esboçou uma antropologia da barbárie humana, tentando demonstrar que as noções de Homo sapiens, Homo faber e Homo economicus eram por si mesmas insuficientes: o Homo sapiens, dotado de espírito racional, pode ser ao mesmo tempo Homo demens, capaz de delírio, de demência. O Homo faber, que sabe fabricar e usar utensílios, é também capaz de produzir inúmeros mitos. Por sua vez, o Homo economicus, que se determina em função do seu próprio interesse, é também o Homo ludens, o homem do jogo, da despesa, do desperdício.

O Pedro Ribeiro prossegue a sua cruzada proferindo:

Acordai!
Sou o novo rei deste reino
Estoirai foguetes
Pilhai os bancos
Queimai o dinheiro!

Contudo, «não bateis palmas! Não quero palmas! Só quero a Humanidade!». O autor socorre-se das aporias povo versus trabalho e, aqui, é questionável a sua noção de Humanidade:

Porque raio terei eu de defender o povo quando o povo é imbecil e ignorante por culpa própria? O povo não tem consciência que anda a ser comido pela sociedade-espectáculo, pela especulação financeira, pelos media. Se não queres ler, o problema é teu! Não sabes o que perdes! Tenho pena dos que não sabem ler nem escrever, dos outros não. É tempo de acabar com a glorificação do povo, do povo trabalhador. Essas velhas bandeiras da esquerda e até de alguns libertários são obsoletas. O povo não merece ser glorificado. O povo rejeita o filósofo e o poeta, sobretudo quando eles aparecem com as vestes da pobreza. Ah, Nietzsche! Ah, Zaratustra! Como és sublime! Afasta-te do rebanho! Afasta-te da multidão! Eles não te merecem. Fala apenas com os poucos que te ouvem. Não trabalhes! Não te sujeites a chefes, a regras repressivas, ao Estado! Cria!

Já não estamos no contexto da revolução industrial mas sim da revolução digital e do que apelido de «geração refrigerante», que cultiva a descartabilidade e o imediatismo ancorados nas Novas Tecnologias - a fast thinking society. Curiosamente, sob o advento da sociedade em rede e dos baluartes da informação e do conhecimento, os integrados preconizam o regresso à economia simbólica e à troca directa. Temos à nossa disposição um manancial de aplicações e ferramentas online que nos proporcionam a integração em comunidades de interesses, de objectivos e a partilha de recursos. Uma das vias possíveis de fundamentar a coesão da comunidade assenta nessa partilha e a minha valorização como membro passa pelo valor dos recursos comungados. Contudo, a questão de partida impera: este individualismo em rede que fomenta os capitais relacional e cultural redunda, em última instância, no capital económico. A posse de um computador, de uma ligação à Internet, o mínimo de conhecimentos informáticos e da língua-mãe (Inglês) traduzem-se num quantitativo monetário.

Daí que, o autor prossiga nesse campo de simbolismos e metáforas:

O dinheiro é a causa de todos os males. O dinheiro é o único deus todo-poderoso que comanda as relações entre homens, entre instituições, entre países. O outro deus está morto. É da posse do dinheiro que nasce a intriga, a hipocrisia, o ódio, a competição, a desigualdade, a guerra, a filha da putice, a pulhice, a aldrabice. Enquanto existir dinheiro haverá sofrimento. O dinheiro pertence à morte, aos profetas da morte, aos mercadores. O dinheiro é a negação da vida, da liberdade e da humanidade. O dinheiro converte tudo em mercadoria. Tudo se vende, tudo se compra, nós próprios estamos à venda no mercado. O mundo é um gigantesco mercado. O capitalismo globalizado traz consigo a coroação do deus supremo a quem todos obedecem. Em nome da humanidade, em nome da liberdade, em nome do amor, acabemos com o dinheiro. Organizemos festins e motins. Queimemos o dinheiro! Queimemos o dinheiro na praça!

Confesso que nunca esperei por Godot e não vim aqui para profetizar ideologias ou propor alternativas! Mas reitero que, à luz do comunismo, o desaparecimento do dinheiro não significa o fim de todas as estimativas de custos. As sociedades e as acções humanas presentes, passadas e por vir são obrigatoriamente confrontadas com esse problema quer utilizem, ou não, símbolos monetários.

Professo, porém, do livre arbítrio que assiste a cada indivíduo, não obstante o peso das condicionantes sociais, e do campo de possíveis num mundo estatizado, mercantilizado e globalizado. O Pedro Ribeiro aponta precisamente uma das vias quando refere que:

Quero entregar a minha alma ao governo
deixar-me colectar em êxtase
amar-te ordeiramente
como um cidadão cumpridor
quero lançar uma OPA
em directo no Telejornal
imolar-me no mercado global.


Uma ideia tanto mais exequível pois, aqui ao lado, está uma equipa da SIC e o prime time televisivo noticia (quase) sempre o cidadão empreendedor e arrojado. Obrigada!


Referências:

Biblioteca Comunista. Um mundo sem dinheiro: O Comunismo. http://www.velhatoupeira.hbe.com.br/

Bourdieu, P. (1996). Lição sobre a lição. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas.

Morin, E. (2007). Cultura e barbárie europeias. Lisboa: Instituto Piaget.

‘Esperança’, essa coisa de penas feita | Emily Dickinson

‘Esperança’, essa coisa de penas feita – Que assenta na alma – E trauteia a melodia sem quaisquer palavras – E nunca pára, de forma al...