3 de dezembro de 2009

A górgona academicus na era 2.0

Às vezes, a malta reúne-se e promove tertúlias, daquelas em que gosto de premiar os abutres que por mim passa(ra)m… tento não os ver e ouvir mas a lucidez incansável e a canseira lúdica não mo possibilitam. Daí que nunca pude ficar indiferente à górgona-mor dos corredores livrescos. Ainda chegámos a partilhar um espaço até ao dia em que eu decidi comprar uma motosserra e colectar o meu meio ar condicionado. O ar era irrespirável pois o raio da górgona contabilizava a quantidade de cigarros que eu sugava; o meu tempo de almoço e recorde de pataniscas ingeridas; o número de chamadas para o meu celular; as minhas idas à casa de banho; o número de e-mails por mim enviado; a marca de perfume por mim usada; as vezes que eu mudava de figurino por semana; o tamanho dos meus anéis e colares, para não entrar em mais pormenores… apenas fico intrigada como ela nunca conseguiu quantificar o seu próprio índice de mesquinhez… deve existir uma fórmula linguisticamente testada para o efeito, daquelas que a própria Bardin corrobora com as variantes da análise de conteúdo. Se há coisas que me deixam fula e me fazem deglutir ainda mais pataniscas é constatar que existem ratas de biblioteca à deriva na carreira, ávidas de ambição mas subjugadas pela falta de auto-estima e pela mão ubíqua do cônjuge.

Os excertos que apresentamos de seguida têm como objectivo principal ilustrar a rotina frívola da Górgona e do seu dilecto esposo Poseídon, afigurando-se como objectivos secundários manter a minha sanidade mental e obstar a que a dita motosserra escalpelize os seus invejáveis cabelos.

Górgona (G): Olha, acabei de chegar ao gabinete e enfim… acho que ela hoje tresanda a Calvin Klein e tinha o ar condicionado ligado… agora deve ter ido à casa de banho, depois tomar um café e fumar dois cigarros. E anda o Estado a subsidiar estes bolseiros… mas olha não era disto que queria falar. Estás aí?

Poseídon (P): Estou a acabar de rever a apresentação e daqui a pouco, vou ler as cábulas para a aula mas diz lá…

G: É rápido, é que cheguei e deu-me a sensação de que o meu computador já estava ligado…

P: Mas tu é que tens a password, não é?


G: Sim mas…

P: Então, não é possível!

G: Pois, deve ter sido reflexo mas quando acedi ao Outlook, não tinha Internet! Achas que ela podia ligar e desligar?

P: Mas o servidor é geral e só tu tens a password, não é?

G: Hum… agora já está a estabelecer a ligação mas está lento… deixa estar, vou tentar resolver isto. Até logo.

[volvidos cinco minutos]

G: Estou? Estás aí?

P: Diz… mas rápido pois vou dar aulas!

G: Acabei de receber um e-mail e estou um bocado atónita, nem sei que dizer… vou ter que responder já a esta aluna mas nem sei bem que dizer… como achas que devo começar o e-mail?

P: A aluna tem nome?

G: Claro, mas será abusivo tratá-la por estimada ou cara… e depois, vou logo directa ao assunto ou… hum, será que loquaz é sinónimo de eloquente? Vê aí! Ela também pede uns dados mas esses relatórios ficaram em casa. Achas que os viste em cima da mesa da sala? Se calhar vou ligar à minha mãe para confirmar. E não estou ainda a ver qual o melhor termo para concluir a missiva, mas vai lá, depois falamos….

P: Até logo! (ggggrrrrrrrrrrrr)

‘Esperança’, essa coisa de penas feita | Emily Dickinson

‘Esperança’, essa coisa de penas feita – Que assenta na alma – E trauteia a melodia sem quaisquer palavras – E nunca pára, de forma al...