27 de fevereiro de 2009

Bem-vindos ao deserto das minhas sextas-feiras!!!

Após a publicação de mensagens tão eruditas e poeticamente eivadas, há que partilhar o quotidiano, esse absoluto da rotina terrena.

É com entusiasmo e efusividade que acordo às sextas-feiras de manhã, pois é dia de ir às compras e em família. O enredo, com algumas nuances, é o seguinte:

1. Eu e a minha mãe avançamos para o centro munidas de um carrinho. Enquanto eu tomo café numa confeitaria, sobejamente conhecida, a minha mãe artilha-se, monetariamente falando, numa filial de um banco sobejamente conhecido. Às vezes, há algumas nuances pois é-me pedido para comprar pães de centeio.

2. Mais uns passos, e já aterramos num supermercado, sobejamente conhecido, para comprar abacaxi previamente cortado, queijo e fiambre (para a vizinha), mais queijo (para nós), fiambre normal (para os meus pais), fiambre fumado (para moi) e de frango (para o gato). Há, sim, as tostas e os queijos frescos cuja validade eu avalio religiosamente.

3. Em seguida, rumamos para um talho, também ele sobejamente conhecido, onde aproveito para ler o jornal e, por vezes, saio para tomar o segundo café da manhã a fim de não esmorecer. Após os pedidos do frango, lombo, bife, asas, iscas de fígado (para a vizinha), não olvidar o frango do campo e sangue (oferecido) para a cabidela, a cordorniz «grande e gorda» para o meu pai e, claro, a morcela ou chouriça, às vezes fico confusa na subárea dos enchidos.

4. Aí sim, avizinha-se a loucura suprema! Vamos ao mercado, mundialmente falado, onde conheço algumas peixeiras que continuam a ciciar o infortúnio da visita do Sousa Franco. Aproveito sempre para aprender a tratar do peixe e ouvir as últimas sobre o Leixões que, curiosamente, joga hoje com o Glorioso. Após o esventramento do peixe, lá seguimos para a secção supra das azeitonas. Saio para fumar um cigarro enquanto a minha mãe vai à mercearia em frente, não muito conhecida, com o pretexto do bacalhau.

5. Suspiro quando vejo o metro a passar e penso como seria agradável estar na esplanada do Piolho! Novo round a outro supermercado, sobejamente conhecido, onde se compra a comida para os felinos, o canídeo, revistando os cupões de desconto a fim de averiguar se esta semana levamos pão de forma integral, que chocolates estão em promoção, iogurtes, queijo (sim, mais queijo!), óleo, massa, azeite e afins. Claro que a minha função é certificar as datas de todos os produtos e respectivo armazenamento no carrinho. Confere-se a conta e lá vamos nós mais acima a uma loja, também ela pouco conhecida, onde se compram os secos para os animais e alpista.

6. Aí, perto do embate final vamos ter com o meu pai a uma loja de pesca, desportivamente conhecida, onde ele está confortavelmente instalado e rumamos os três para o último hiper a visitar. A esta altura, já nem sei se é super ou hipermercado, se é ou não conhecido pois só consigo pensar na recta final deste suplício. Aqui, compramos vinho, água, leite, compotas, café e cevada e está mesmo mesmo a terminar quando eu arrumo o carro mas a minha mãe confere o ticket e há erro crasso e temos que ir reclamar pois tem que ser feito in loco. E pronto, lá se passou uma manhã neste devaneio interminável que só cessa quando se chega a casa, descarrega o material e se acarta para a despensa. Posto isto, só me apetece tomar um banho e nem consigo olhar para os víveres à hora de almoço.

Nota: Por motivos de honestidade comercial, não se citaram os nomes dos locais visitados nem referenciámos qualquer marca. Aproveito, ainda, para agradecer a simpatia semanal com que somos acolhidas e, não me levem a mal, quem me dera nunca mais vos pôr a vista em cima, sejam felizes e sim, creio que nos iremos ver já na próxima sexta-feira...

26 de fevereiro de 2009

«As palavras para nomear o que é belo definharam»

«Tene me», Hélia Correia

O seu amor rodeia-me a garganta.
Foi bem cedo selado, este metal,
e o meu pescoço não robusteceu.
Nem quase canto.
Dizem que são belas as vozes das cativas.
Porém não estas,
as que enrouqueceram
sob o estrangulamento do amor.











Campos e noites. Voaria, aquela
a quem o gancho do mar tolheu
o movimento das omoplatas.
Ensaia apenas uma elevação,
como os cães nos quintais,
pedindo a lua.
Correria, se houvesse no amor
a mínima distancia consentida,
um certo alívio.
Mas somente o ferro
e o seu conhecimento delineiam
os muros da paisagem.
Quem caminha
depõe um rasto
como se cortassem,
para que sangrem,
seus pés.
Curta é a terra
para os assinalados do amor,
os que trazem gravado este comando
para que os levem de volta.

Alguém ganhou
numa zona de caça
a sua presa
por mera distracção.
Com um olhar,
o sinal para que soldem as cadeias,
aquele em cujo nome
o amor prendeu
é livre de jogar
a sua parte.



in Apodera-te de mim

25 de fevereiro de 2009

Após o interregno carnavalesco e recém-chegada de Sever do Vouga, resgato o pensamento de Proust que alega que a verdadeira viagem não consiste em buscar outras paisagens mas ter outros olhos.

Nota: A tradução é da nossa responsabilidade e citamos Proust na medida em que não tivemos oportunidade de visitar a obra A Fenomenologia do Ser de Sartre.

20 de fevereiro de 2009

19 de fevereiro de 2009

Australia, here I go!

«Vigílias», Al Berto

1.

quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer

a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrerem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas

um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz


quero morrer
com uma overdose de beleza

e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta o coração
esse
solitário caçador



2.

de labirinto em labirinto
construí o tempo de imperceptíveis gestos
no ouro da memória tecia o minotauro
tatuado a néon sobre o ombro
depois
por entre fumo de haxixe cresceram as cabeças
das leoas de Delos hirtas
nenhum sofrimento nos atingia
quando apertei a mão de meu amigo
e o levei pelo sono do mar
onde se levanta um corpo
capaz de paralisar de alegria o coração
parámos de nos contar histórias antigas
mas a sedução do minotauro permanecia
e falámos tanto que me esqueci de te dizer
uma ave sangra sob os passos
onde a cinza rubra de fogueira extinta
reacende um desejo que nos murmura

quando morrerdes o amor dispersar-se-á
e flor nenhuma como Narciso Adónis ou Jacinto
te recordará

fomos em silêncio pelas ruínas da ilha
não encontrámos água
bebemos os poemas e a paixão
bebemos sôfregos o vento ardente
até perdermos o sentido das palavras
e cada vez mais sós debruçados para a noite
dos oráculos insones entre crepúsculo e alba
nenhuma saída se vislumbrava


in Uma Existência de Papel

18 de fevereiro de 2009

Voz de Deus | 3

Foi-nos confidenciado que já circula (a título não confidencial), no eixo Norte-Sul, a revista Voz de Deus, uma co-publicação das Edições Mortas e Black Sun Editores.

No terceiro número sopra o «Beijo do Estado», num ciclo que visa «minar a vida cultural-espiritual, problematizando o cepticismo perante o objecto estético, a linguagem e a incapacidade de comunicar».

11 de fevereiro de 2009

«És a minha sombra e eu o peso do teu corpo»
Por vezes parece que as coisas serão assim: tu tens tal tarefa a cumprir, dispões de tantas forças quantas são necessárias para a levar a bom termo, com bastante tempo teu e boa vontade para o trabalho, onde está o obstáculo ao êxito da imensa tarefa?
Não percas tempo a procurá-lo, talvez não exista.

10 de fevereiro de 2009

«Quando Elas Despertam...», Constantino Cavafy

Procura guardá-las, Poeta,
por poucas que sejam de guardar,
do teu amar as visões.
Coloca-as meio ocultas nas tuas frases.
Procura detê-las, Poeta,
quando em tua cabeça elas despertam,
de noite ou na luz crua do meio-dia.

[1916]

6 de fevereiro de 2009

«O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo»

Um homem é dotado de livre arbítrio de três maneiras: em primeiro lugar, era livre quando quis esta vida; agora não pode evidentemente rescindi-la, pois ele não é o que a queria outrora, excepto na medida em que completa a sua vontade de outrora, vivendo.
Em segundo lugar, é livre pelo facto de poder escolher o caminho desta vida e a maneira de o percorrer.
Em terceiro lugar, é livre pelo facto de na qualidade daquele que vier a ser de novo um dia, ter a vontade de se deixar ir, custe o que custar através da vida e de chegar assim a ele próprio; e por um caminho que pode sem dúvida escolher, mas que em todo o caso, forma um labirinto tão complicado que toca nos menores recantos desta vida.
São esses os três aspectos do livre arbítrio que por se oferecerem todos ao mesmo tempo formam apenas um e de tal modo que não há lugar para um arbítrio, quer se seja livre ou servo.

5 de fevereiro de 2009

O Inferno são os outros

Ainda ontem, ao ler Steinbeck, retive que há horas perigosas… Estranhei mas hoje, de manhã, auscultei o seu significado. A malta até acorda bem-disposta, toma banho e sai à rua para tomar café e eis que… há mesmo lugares estranhos e horas perigosas!

Convenhamos que devido a um acidente cromossomático nasci mulher mas que a parelha XX não dite o meu percurso. Beauvoir dizia que ninguém nasce mulher mas torna-se mulher. E isto parece acarretar alguns fardos, designadamente o do casamento e o da procriação. Pois bem, eu estou numa união de facto comigo mesma, por questões de subserviência, e não, não estou de esperanças.

A todos esses esgares, só posso retorquir com Camus: «Nas profundidades do Inverno, finalmente aprendi que dentro de mim existia um Verão invencível».

Assunto Infinito | Pulga Estúdios

Mais um caso de domesticação poiética da violência, a partir do poema renegado por Guerra Junqueiro «A Torre de Babel ou a Porra do Soriano»

‘Esperança’, essa coisa de penas feita | Emily Dickinson

‘Esperança’, essa coisa de penas feita – Que assenta na alma – E trauteia a melodia sem quaisquer palavras – E nunca pára, de forma al...