29 de janeiro de 2010

28 de janeiro de 2010

Ideia da Parede | Fiódor Dostoiévski

... os homens que saem do vulgar e os homens de acção detêm-se sempre, com toda a sinceridade, diante de uma parede. Para eles, a parede não é uma desculpa, como é para nós, os que raciocinamos e, por conseguinte, nada fazemos; não lhes serve de pretexto para desfazer o que está feito: pretexto com o qual nos damos por satisfeitos. Não, eles param com toda a sinceridade. A parede tem para eles qualquer coisa de calmante, de decisivo, de derradeiro, talvez algo de místico...

27 de janeiro de 2010

A gaja corre ofegante para apanhar... o metro, claro está! À semelhança dos comuns mortais, a gaja entra e sofregamente busca um lugar sentado pois há que rentabilizar a tarifa. Há um lugar livre e parece que a viagem vai ser tranquila pois o lugar ao lado está avariado, tendo como sinalética «ESTE LUGAR NÃO DEVE SER UTILIZADO». Porém, emerge o espécime masculino n.º 1 que, na qualidade de estrábico, não repara e tenta fruir do assento. Resultado: cai e desaparece! A viagem prossegue e na estação seguinte entra o espécime masculino n.º 2, mais novato, que de novo não exercita a faculdade da interpretação e sim, tenta sentar-se e cai, também! A gaja esboça um sorriso pois é demasiado patético! Como todos sabem, o metro é um transporte público misto e só os homens caem nesta. À terceira a gaja desmancha-se pois o espécime masculino n.º 3, depois de tantas tentativas goradas, enceta a sua odisseia ao assento em questão e desta feita a queda é mais acentuada! Meus senhores, estava lá um letreiro, não estava?????

26 de janeiro de 2010

Nada é irreversível e as condições democráticas humanistas devem regenerar-se permanentemente para não degenerarem. A democracia tem necessariamente de se recriar em permanência. Pensar a barbárie é contribuir para a regeneração do humanismo. Logo, é resistir-lhe.

Edgar Morin, Cultura e Barbárie Europeias

21 de janeiro de 2010

Ideia do poema-corpo | Maria Estela Guedes

Há viagens particularmente leves. É assim que recordo o Filo-café realizado em Lamego (2009) e que permitiu o encontro com Maria Estela Guedes. Importando o «CUDOS» mertoniano para o nicho da poesia, o seu livro Herberto Helder, poeta obscuro (Moraes Editores, 1979) tem-me acompanhado na decifração (possível) dos códigos poéticos que presidem à genialidade da obra herbertiana. Sob o advento do «poema-corpo», eis os considerandos de Maria Estela Guedes:

O poema cresce lenta e radialmente no interior da carne, homologando-se à teia sanguínea. Corpo a desenvolver-se na placenta vital, ele próprio matéria vital ainda em fase de organização, será mais tarde expulso à semelhança de nascituro, a estrela vulvar.

Escrever será uma aventura ontológica, implicando ligar-se vitalmente ao outro, aos outros, maneira de tocar o mundo segundo simples e imediata relação corporal: o poeta vai ao encontro do que existe de mais espontâneo e primitivo na vida, atravessando a membrana das convenções morais e sociais, única forma de atingir o primário e fundamental em coisa e pessoas.

Pureza e espontaneidade, energia primordial perdurando e ocultando-se sob a opressão das leis sociais, eis a natureza básica da poesia. Por isso, só o homem bárbaro, o primitivo e a criança estão suficientemente isentos do constrangimento normativo para poderem mover-se no país da linguagem poética enquanto acção fundadora: o país da magia e dos segredos.

A capacidade de visão do sujeito poético vai ao ponto de atravessar as membranas epidérmicas, pondo a nu a rede sanguínea e estrutura óssea dos rostos. Detém-se no sangue, por ser o elemento produtor de calor e luz: a teia sanguínea representa a mais profunda dimensão do corpo, a sua energia vital mais subterrânea.


As membranas corporais não apenas deixam coar a luz, como deixam coar o som e, no caso do suor, a água. Ou seja, o corpo apresenta-se poroso, lugar sem fronteiras, espaço de múltiplas travessias: o mundo é o alimento que o corpo devora. Após a digestão, a gestação, ou a maturação, algo de novo sairá do corpo.

15 de janeiro de 2010

Ideia da Musa | Giorgio Agamben

Que uma latência se mantenha para que possa haver não-latência, que um esquecimento seja preservado para que possa haver memória: é isto a inspiração, o transporte suscitado pela musa, que põe o homem em harmonia com a palavra e o pensamento. O pensamento só está próximo da coisa se se perder na sua latência, se deixar de ver a coisa. Esta é a sua natureza de coisa "ditada": a dialéctica latência/não-latência, esquecimento/memória é a condição que permite que a palavra possa acontecer, e não apenas ser manipulada por um sujeito.

Mas esta latência é também o núcleo tartárico em volta do qual se adensa a obscuridade do carácter e do destino, o não-dito que, agigantando-se no pensamento, o precipita na loucura. Aquilo que o mestre não vê é a sua própria verdade: o seu limite é o seu princípio. Não vista, não exposta, a verdade entra no seu ocaso, fecha-se no seu próprio amanthis.

A insuficiente exposição do princípio constitui este em limite do que é dado pela musa, em inspiração. Mas, para poder escrever, para poder tornar-se também inspiração para nós, o mestre teve de abandonar a sua inspiração, teve de a esgotar: o poeta inspirado é um poeta sem obra. Este rasurar da inspiração, que arranca o pensamento ao reino das sombras do seu ocaso, é a exposição da Musa: a ideia.

14 de janeiro de 2010

«Desvarios da Musa» | Elisabete Pires Monteiro

Uma das ditaduras mais subliminares é, decerto, a que é imposta pela publicidade. Anteriormente, mencionámos o corpo e a publicidade dita arquétipos, preceitos de «beleza» e medidas antropométricas ideais e idealizadas, ao mesmo passo que divulga produtos e bens que as (de)formam. As mensagens apelam aos sentidos, afectos e pertenças simbólicas.

Recentemente foi noticiado que deverá cessar a publicidade alusiva a determinado tipo de alimentos e direccionada, sobretudo, ao público infanto-juvenil, dada a epidemia da obesidade que grassa na sociedade portuguesa. Talvez se estranhe a ausência de tais mensagens mas, certamente, o consumo desses bens continuará a entranhar-se. Trata-se de um meio difuso na construção e imposição de gostos e consumos, mas não podemos confinar a intervenção a este nível. A obesidade que afecta cada vez mais crianças e adolescentes não tem no meio publicitário o único bode expiatório. Urge uma resposta sistémica, o que equivale a abordar os estilos de vida correntes, a construção social dos gostos, a escola, entre outros, sem descurar o famigerado sedentarismo dos tempos livres de televisão, videojogos e Internet feitos.

12 de janeiro de 2010

«Não», Natércia Freire

Não formar nenhuma ideia
Do que somos ou seremos
Mas entre as vozes que fogem
Precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
Abismos que são infernos.
Dormir em paz. Dormir paz,
Enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
Que penetraram no espaço
De eventos primaveris.
E dar a mão aos espectros
Beijá-los lendas, perfis.
Amar a sombra, a penumbra
Correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
Abraçar quem nos ignora
Dormir com quem não nos vê
Mas precisar do calor
De quem nunca nos encontra.
Consegue conceber meia eternidade?

8 de janeiro de 2010

Nesta rubrica, inauguramos a referência a algumas formas de opressão manifestas/latentes, mais ou menos simbólicas, por todos vivenciadas mas, por vezes, por poucos sentidas como tal.

Cabe ao corpo o lugar de destaque, locus de inscrições e de exteriorização de normas individual e socialmente impostas.


Sociedades em confusão, desmoronamento das ideologias, dúvida crescente face às certezas da ciência, o corpo é simultaneamente fonte de desprezo e de narcisismo, lugar de uma violência social colectiva, lugar de uma violência individual psíquica.

Braunstein & Pépin, O Lugar do Corpo na Cultura Ocidental

7 de janeiro de 2010

A cada três segundos, à escala glocal, há um escritor cuja veia estanca.

6 de janeiro de 2010

«Vem, vento, varre», Adolfo Casais Monteiro

Vem, vento, varre
sonhos e mortos.
Vem, vento, varre
medos e culpas.
Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
nocturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só cobardia.

Que fique apenas
erecto e duro
o tronco estremece
de raiz funda.

Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.

Vem, vento, varre!

5 de janeiro de 2010

Viver nos subúrbios é… é muito impressionante!

Nada melhor do que os narizes argutos que farejam a vida dos outros, sob olhares fortuitos, debitando teorias e teoremas, sob o signo universalmente aceite como sinónimo de aprovação/reprovação das condutas alheias.

É igualmente refrescante entrar num café e participar no concurso do berro, competindo com a própria televisão.

Podemos não conhecer as pessoas mas as descrições detalhadas, e elevadas aos pormenores mais íntimos, constituem pistas preciosas para a sua identificação. E há sempre um denominador comum aos tópicos de infindas conversações: maleitas e medicamentos; separações e infidelidades; mortes e cemitérios; economia e heranças (adoro particularmente este tópico em que todos palpitam refazendo os testamentos de terceiros).

A última cliente bem tinha razão ao exclamar: «o que é preciso é paz»! Pois por aqui, a paz passou ao lado e teima em não regressar…

‘Esperança’, essa coisa de penas feita | Emily Dickinson

‘Esperança’, essa coisa de penas feita – Que assenta na alma – E trauteia a melodia sem quaisquer palavras – E nunca pára, de forma al...