31 de dezembro de 2009

Até já em 2010

«Há aqueles que lutam um dia; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;
Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis»
.

B. Brecht

Obrigada a todos os que me acompanharam ao longo deste ano. Tempo difuso de perdas pessoais mas também de descobertas e de novas incursões.

Aos meus Pais, pelo amor incondicional; à Pulga Estúdios pelo companheirismo criativo; à Incomunidade pela «tribo das portas sensíveis»; a todos os meus amigos que, face a face ou digitalmente, estiveram presentes, esses sim são os meus imprescindíveis!

Até já, já em 2010!
( )s

30 de dezembro de 2009

Filo-café: Descoberta | Invenção

Taberninha do Manel Vila Nova de Gaia
Av. Diogo Leite, 308
16 Janeiro 2010 21h30m

Apresentação do livro Sonetos Para-Infantis de Pedro Ludgero

O amor em tempos descartáveis e plastificados (II)

Eis quando Penélope e Ulisses esvoaçam por entre os céus do Olimpo que a dualidade encapotada se transforma numa trilogia. Isto porque a mise-en-scène requer uma terceira divindade. Desta feita, uma Medusa cuja cabeça oxigenada enquista de um autismo psicologizante. Esta Medusa da áurea moderna ou pós-moderna (por favor, caros ciberleitores não entremos em querelas terminológicas), aspirava a ser Diana, a deusa da caça. Isto porque o seu cosmos lexical entranha os termos alusivos à cadeia predador/presa e um eterno «espetar as garras em...». Claro está que, imbuída de bagatelas psicológicas, se situa numa redoma de cristal, de castelos suspensos erguidos no ar de uma vivência cor-de-rosa.

Uma Medusa oxigenada, um abutre encapotado e que, sem quaisquer dúvidas, almeja sabotar o enlace de Penélope e Ulisses.

Ulisses é forte, no âmbito das suas parcas possibilidades, um deus invertido pois o seu «calcanhar de Aquiles» é de uma fraqueza acutilante, o que transparece no percurso que segue, nas escolhas que faz, nos projectos que abraça, na descartabilidade das deusas do Olimpo, sempre à socapa de novas musas, ninfas e ninfetas que sucumbam perante o seu charme e sedução aparentes e superficiais. E nunca, nunca conseguiu contornar o seu próprio Adamastor!

Mas calma caros ciberleitores! Ulisses é esperto demais! Vitimiza-se e o papel de vítima assenta-lhe bem, relevando a sua eterna infelicidade, carpindo as suas mágoas e angústias, mas sapiente nas charadas e nos jogos psicológicos que entretece. Daí, o encanto ou encantamento por Medusa e o fascínio pela psique.

Ulisses até é um gajo divinal e caricato. Promulgando a era do emocional, peca pelo fundamentalismo da Razão imbuído pelo Século das Luzes, um «iluminado» pela castração e pela repressão dos seus afectos.

Mas, afinal, o que é que o Amor tem a ver com tudo isto, sob o advento dos relatos descartáveis e efémeros?

Num dos seus vaticínios ou presságios, Ulisses prospectiva o movimento feminista. No seu discurso transparece já os seus receios e temores. Não é que, nos tempos que se avizinham, as mulheres vão tornar-se em caçadoras solitárias, na senda de uma carreira profissional, relegando a condição feminina que, na sua óptica redutora, impregna o património genético do cromossoma XX?

Qual Velho do Restelo, a sua antevisão é a de que a raiz de todos os males que irão assombrar as sociedades vindouras reside nisto mesmo. Um cenário de perplexidade, um compósito de lares desfeitos, de divórcios consumados, de filhos iletrados e consumidores de drogas... E essa condição feminina, imputada à nascença pelo reduto genético, apenas lhe dá asas para que possa navegar mais livremente sem quaisquer freios pois, mantendo as suas deusas, ninfas e ninfetas no reduto caseiro, Ulisses dá asas à sua imaginação, ensaiando e descartando.

22 de dezembro de 2009

Algoritmo do corpo | René Crevel

Ainda antes da (de)formação corpórea pelo habitus da comensalidade natalícia:


EU + X / Y = uma bruta bacanal


Para dizer a verdade, o mistério mantém-se. A pele não me revelou nada. Acabei por saber que os contornos carnais não marcam nenhumas fronteiras e os corpos bem podem estar receptivos: o apaziguamento não será coisa do espírito.

Equação de pele em cima dos divãs, juntam-se letras e algarismos humanos, mudam de lugar, procuram noções de igualdade sem parecer, aliás, que se divertem muito.

Não era, no entanto, o meu corpo mas o meu espírito que pedia um espelho.

15 de dezembro de 2009

Ideia da Ironia | Albert Camus

Como estou saturada do frenesi pretensamente altruísta cultivado pela e na quadra natalícia, nada melhor do que retomar a ironia de Camus…


Há dois anos, conheci uma velha. Sofria ela de uma doença de que tinha pensado que morria. Todo o seu lado direito tinha ficado paralisado. Não tinha senão uma metade neste mundo e a outra já lhe era estranha. Velhinha mexida e tagarela, tinha sido reduzida ao silêncio e à imobilidade. Sozinha durante longos dias, iletrada, pouco sensível, a sua vida voltava-se inteiramente para Deus.

Naquele dia, alguém se interessava por ela. Era um rapaz. Tinha tomado verdadeiro interesse pelo tédio da velha. Isso, tinha-o ela sentido bem. E aquele interesse era uma sorte inesperada para a doente. Ela contava-lhe as suas dores com animação: estava no fim dos seus dias e é bem preciso deixar o lugar aos novos. Se se aborrecia? Isso era evidente. Não falavam com ela. Estava no seu canto, como um cão. Mais valia acabar. Porque ela gostaria mais de morrer do que estar a cargo de alguém.

Tinham ido para a mesa. O rapaz tinha sido convidado para jantar. A velha não comia porque os alimentos são pesados à noite. Tinha ficado no seu canto, por detrás daquele que a tinha escutado. Para prolongar a reunião, decidiram ir ao cinema. Ia justamente uma fita alegre.

O rapaz tinha aceitado irreflectidamente, sem pensar no ser que continuava a existir atrás de si. Ele sentia-se colocado diante do mais atroz infortúnio que tinha ainda conhecido: o de uma velha doente que se abandona para ir ao cinema. Queria ir-se embora e furtar-se-lhe, não queria saber, tentava retirar a mão. Durante um segundo teve um ódio feroz àquela velha e pensou em esbofeteá-la à toa.

Mas que importa se aceitarmos tudo? A morte para todos, mas para cada um a sua morte. Afinal de contas, o sol aquece-nos os ossos apesar de tudo.

3 de dezembro de 2009

A górgona academicus na era 2.0

Às vezes, a malta reúne-se e promove tertúlias, daquelas em que gosto de premiar os abutres que por mim passa(ra)m… tento não os ver e ouvir mas a lucidez incansável e a canseira lúdica não mo possibilitam. Daí que nunca pude ficar indiferente à górgona-mor dos corredores livrescos. Ainda chegámos a partilhar um espaço até ao dia em que eu decidi comprar uma motosserra e colectar o meu meio ar condicionado. O ar era irrespirável pois o raio da górgona contabilizava a quantidade de cigarros que eu sugava; o meu tempo de almoço e recorde de pataniscas ingeridas; o número de chamadas para o meu celular; as minhas idas à casa de banho; o número de e-mails por mim enviado; a marca de perfume por mim usada; as vezes que eu mudava de figurino por semana; o tamanho dos meus anéis e colares, para não entrar em mais pormenores… apenas fico intrigada como ela nunca conseguiu quantificar o seu próprio índice de mesquinhez… deve existir uma fórmula linguisticamente testada para o efeito, daquelas que a própria Bardin corrobora com as variantes da análise de conteúdo. Se há coisas que me deixam fula e me fazem deglutir ainda mais pataniscas é constatar que existem ratas de biblioteca à deriva na carreira, ávidas de ambição mas subjugadas pela falta de auto-estima e pela mão ubíqua do cônjuge.

Os excertos que apresentamos de seguida têm como objectivo principal ilustrar a rotina frívola da Górgona e do seu dilecto esposo Poseídon, afigurando-se como objectivos secundários manter a minha sanidade mental e obstar a que a dita motosserra escalpelize os seus invejáveis cabelos.

Górgona (G): Olha, acabei de chegar ao gabinete e enfim… acho que ela hoje tresanda a Calvin Klein e tinha o ar condicionado ligado… agora deve ter ido à casa de banho, depois tomar um café e fumar dois cigarros. E anda o Estado a subsidiar estes bolseiros… mas olha não era disto que queria falar. Estás aí?

Poseídon (P): Estou a acabar de rever a apresentação e daqui a pouco, vou ler as cábulas para a aula mas diz lá…

G: É rápido, é que cheguei e deu-me a sensação de que o meu computador já estava ligado…

P: Mas tu é que tens a password, não é?


G: Sim mas…

P: Então, não é possível!

G: Pois, deve ter sido reflexo mas quando acedi ao Outlook, não tinha Internet! Achas que ela podia ligar e desligar?

P: Mas o servidor é geral e só tu tens a password, não é?

G: Hum… agora já está a estabelecer a ligação mas está lento… deixa estar, vou tentar resolver isto. Até logo.

[volvidos cinco minutos]

G: Estou? Estás aí?

P: Diz… mas rápido pois vou dar aulas!

G: Acabei de receber um e-mail e estou um bocado atónita, nem sei que dizer… vou ter que responder já a esta aluna mas nem sei bem que dizer… como achas que devo começar o e-mail?

P: A aluna tem nome?

G: Claro, mas será abusivo tratá-la por estimada ou cara… e depois, vou logo directa ao assunto ou… hum, será que loquaz é sinónimo de eloquente? Vê aí! Ela também pede uns dados mas esses relatórios ficaram em casa. Achas que os viste em cima da mesa da sala? Se calhar vou ligar à minha mãe para confirmar. E não estou ainda a ver qual o melhor termo para concluir a missiva, mas vai lá, depois falamos….

P: Até logo! (ggggrrrrrrrrrrrr)

2 de dezembro de 2009

«7», Mário de Sá-Carneiro

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

1 de dezembro de 2009

O amor em tempos descartáveis e plastificados

Sempre que abordam a problemática das relações (im)pessoais, lembro-me do meu amigo Ulisses como o protótipo do gajo que descarta. Descarta tudo e todos. Descarta-se a si mesmo sem o saber, reprimindo e castrando os seus próprios sentimentos. E a ânsia de ambição é tão desmedida que, no silêncio e no eco das suas próprias ideias e projectos, descarta tudo o que se lhes sobrepõe. É infeliz e a sua infelicidade e podridão corroem-no e corrompem os demais.

Ulisses (invertido) é um homem (com letra minúscula) vivido, experiente e que prima pelos jogos psicológicos que entretece com as indivíduas, em particular, as indivíduas magoadas, ressabiadas e com antecedentes maníaco-depressivos.

Penélope é bela, aufere de uma beleza e elegância, à mistura com charme, e reveste-se de ideais e de uma forma particular como encara, hoje, o zapping amoroso após uma ruptura afectiva. Contudo, não consegue escapar à teia do descartável, do zarpar efémero.

Ulisses e Penélope compartilham trajectórias de vida similares, com os mesmos percalços e antecedentes, ambos feridos/magoados/ressabiados. Com uma única destrinça: Ulisses enfeuda-se numa redoma de orgulho que o eiva e Penélope, pelo menos o creio, libertou-se desse sentir mesquinho. E contudo, preenchem um vazio incessante mediante a condição efémera da era descartável.

Ulisses, materialmente, frui de tudo mas no plano afectivo não passa de um sem-abrigo, sem poiso certo onde pousar, qual nómada à deriva, sem bússola, preenchendo esse vácuo com projectos e mais projectos, com pensamentos e ideias megalómanas e profundamente líricas, com enlaces descartáveis. O pior disto tudo? Atentando no seu cariz higienista, Ulisses nem preservativo usa na era do VIH/SIDA, ou seja, do «amor» plastificado.

Ulisses é, de facto, o tipo de homem que nos faz sentir realmente bem!! Isto porque ao fazer um convite para um almoço ou um jantar, apenas fala de trabalho e filosofa acerca das eternas querelas do género, mas uma filosofia com um trago de senso comum refinado. Quando termina o repasto – pobre coitado, Morfeu abraça-o, após o seu esgrimir de mamífero primata, e deita-se para no dia seguinte trabalhar, laborar e escolher, de entre o seu cardápio, a gaja a descartar nessa noite.

Será que o coro de uma tragédia grega, ao assistir a esta catarse efémera e descartável, sentiria pena e choraria por ele? Qual o seu veredicto?!? O de Penélope não sei. Talvez fosse laureada e ovada por tamanha paciência, talvez fosse beatificada, por alinhar num jogo de condicionantes, de comportamentos laboralmente aditivos e de enlaces fugazes feito.

‘Esperança’, essa coisa de penas feita | Emily Dickinson

‘Esperança’, essa coisa de penas feita – Que assenta na alma – E trauteia a melodia sem quaisquer palavras – E nunca pára, de forma al...