10 de março de 2009

Freelancer d'almas (cont.)

«Já não sei a quem escrever… Está tão longe toda
essa gente… Mudaram de alma para melhor traírem,
melhor esquecerem, falarem sempre de outra coisa…»
Céline, Morte a Crédito


Mas ainda assim estava confusa. A intenção tinha sido ir a Lisboa ver a exposição da Frida Khalo. Esta visita revestia-se de alguma perfídia na medida em que o Carlos havia balbuciado que tinha chorado a potes ao ver o filme no rescaldo do divórcio. E Ana ainda se sentia órfã do Carlos. Não aquela orfandade pós-bancos da escola académicos, tanto mais que sempre lhe restava o legado comtiano da física social. O seu desprendimento era afectivo mas, sobretudo, de cariz sexual. O corpo, sempre o corpo, «essa puta», como dizia o José. Ai as andanças catalãs e os seus desfechos trágico-cómicos. Sempre que Ana relia Ruy Belo, em particular, «Muriel», recordava o José e as ruas palmilhadas, não em Madrid mas em Barcelona. Andaram de mãos dadas, a brincar aos casais recentemente enamorados, mas nada estava a favor deles: em breve, ela teria que retomar os estudos e ele fora obrigado a descascar batatas para acompanhar o bacalhau cozido com grão. Depois, tinha sido um imbróglio descobrir onde se situava Cornellà de Llobregat e sempre de mãos dadas a tresandar a suor… Ana estava profundamente irritada com tudo isto, com as baratas que quase engolira à mistura com vinho do Porto e com o convite endereçado para colaborar numa colectânea de contos eróticos, sabendo de antemão que tinha o conto já assegurado na medida em que havia partilhado o curral com o José. Mas quem se julga esta meia-leca de editor? Ainda por cima, o voo de regresso ao porto d’abrigo tardava e as amigas lésbicas dele não cessavam de a oxidar com o olhar. Mal sabia ela que a primeira coisa a fazer, depois da aterragem, seria reclamar pela mala trucidada. Há voos assim! E, desta vez, o Miguel não estaria à sua espera no aeroporto com uma rosa de cor mal amanhada e com o bafo de alcoólatra. Nem tudo é mau. Quer dizer, o José tencionava visitá-la no espaço de duas a três semanas, sendo sua tarefa encontrar um ninho de amor. Preferia que o rendez-vous se desse em Paris, assim sempre tinha o pretexto das exposições e dos museus mas, com a sua sina, ainda dava de caras com o Carlos ávido de deslocalização artística. Mas este nunca mais dera sinais da sua ausência e impotência improjectadas, o Miguel devia estar aturdido em álcool, o Adolfo agora era fotógrafo hermafrodita e sim, o José sempre veio e foram felizes algumas horas. Depois, faz-te à vida e desaparece que a menina tem novos projectos e não pode desperdiçar tempo com trípticos narcisistas e intelectuais falidos do Grande Porto.
Ai Primo Levi, se isto é a escrita!!!

‘Esperança’, essa coisa de penas feita | Emily Dickinson

‘Esperança’, essa coisa de penas feita – Que assenta na alma – E trauteia a melodia sem quaisquer palavras – E nunca pára, de forma al...