9 de março de 2009

Freelancer d'almas

«A gente habitua-se a tropeçar…»
Céline, Morte a Crédito

O que é que faz?, insistiu ele, estranhando a forma como aquela mulher apareceu naquele fim de tarde na galeria. O que mais o intrigou foi o facto de estar sozinha, vestida daquele modo e não falar com ninguém. Mas como o poderia fazer? Ela não conhecia ninguém, não se encaixava na amálgama de artistas, galeristas, críticos de arte e afins. Não era o seu meio. Também não conhecia ninguém e ali estava inquieta, ansiosa e silenciada. Mas ainda assim concitava olhares, suposições e intrigava-o. Insistiu ele, o que faz? Bom, eu gosto de arte mas… o que faço aqui ou na vida? É que na vida ainda não sei, como cá vim parar é uma longa história e a bem dizer roubo corações como freelancer, por vezes almas até… mas sempre como freelancer, num registo precário. A fobia ao real e ao compromisso impedem-me de esboçar outros planos. Talvez o tenha desarmado com esta resposta mas ele insistia intrigado. E como soube da inauguração? Estava para lhe dizer bebe mais um copo que isso passa mas o vinho era mesmo mau! A bem dizer nem sequer conhecia o artista. Seria ele? Hum, estranho… antes de responder o que quer que fosse emergiu um (des)conhecido e ela pode apagar-se com mais um cigarro e um copo de vinho. Respirar fundo, deambular mas os olhares seguiam-na. Quem será? Que fará aqui? Não conhece ninguém, não tece comentários, obviamente não se insere em nenhuma das tribos estéticas aqui reunidas. Eu não crio, eu reproduzo. Logo, parte do silogismo já se completou. Como reprodutora ali está ela para se apropriar de imagens e palavras, de rostos e corpos pincelados que outrora conheceu mas dos quais não se lembra mais. O que é que a solidão te diz? Eu arranco corações e, por vezes, quando me deixam roubo almas!

Apaga-te com mais um copo. As gnoses e as crises fenomenológicas não te assentam bem. É tudo tão objectivamente falsificável! E sim, deverias ter optado por trazer um acompanhante. Assim, os esgares e os sobrolhos que teimam em seguir-te ter-se-iam desvanecido. Mas tinhas viajado assim tão à pressa, só com essa mala e esse vestido… ainda bem que os sapatos são tão multifacetados logo aos pés da escada. Ainda pensou no Adolfo mas as coisas não tinham corrido nada bem. Logo agora que ele aspirava a artista enlevado por surrealismos e artes digitais… e no meio seria concorrência desleal. Tinha razão, fazer-se acompanhar por um jovem artista desconhecido e com um look semi-apetecível não teria sido uma boa opção. E sempre terias que aturar com as seis horas de pendular barradas por ateísmos e as últimas do Vaticano! Ainda assim, que andará o Adolfo a urdir? Pelo menos, sob o mote de não te coarctar a liberdade pessoal tinha desamparado a loja. De repente o ardor no estômago impediu-a de prosseguir com este flash-back. Não havia comido nada e esse foi um dos motes para ir à inauguração. É que sempre daria para petiscar algo, se bem que não era socialmente agradável observar uma mulher com aquele porte a deleitar-se com as miniaturas de canapés. Os ritos sociais podem ser, de facto, estranguladores e os rituais de comensalidade parecem não se compadecer com a condição feminina. E assim, a Ana relembrou a teoria da estruturação de Giddens e a dualidade entre estrutura e acção. O actor sempre teria alguma margem de manobra, o que equivale a afirmar: Ana come uns salgados apenas para depois te empanturrares de doces. Ainda assim a companhia do Adolfo teria primado pela frugalidade, ele não come, nunca come, a arte é a sua seiva.

‘Esperança’, essa coisa de penas feita | Emily Dickinson

‘Esperança’, essa coisa de penas feita – Que assenta na alma – E trauteia a melodia sem quaisquer palavras – E nunca pára, de forma al...